quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

O tempo passou e eu me formei em solidão


Sou do tempo em que ainda se faziam visitas. Lembro-me de minha mãe mandando a gente caprichar no banho porque a família toda iria visitar algum conhecido. Íamos todos juntos, família grande, todo mundo a pé. Geralmente, à noite.
Ninguém avisava nada, o costume era chegar de pára-quedas mesmo. E os donos da casa recebiam alegres a visita. Aos poucos, os moradores iam se apresentando, um por um.
– Olha o compadre aqui, garoto! Cumprimenta a comadre.
E o garoto apertava a mão do meu pai, da minha mãe, a minha mão e a mão dos meus irmãos. Aí chegava outro menino. Repetia-se toda a diplomacia.

– Mas vamos nos assentar, gente. Que surpresa agradável!

A conversa rolava solta na sala. Meu pai conversando com o compadre e minha mãe de papo com a comadre. Eu e meus irmãos ficávamos assentados todos num mesmo sofá, entreolhando-nos e olhando a casa do tal compadre. Retratos na parede, duas imagens de santos numa cantoneira, flores na mesinha de centro... Casa singela e acolhedora. A nossa também era assim.
Também eram assim as visitas, singelas e acolhedoras. Tão acolhedoras que era também costume servir um bom café aos visitantes. Como um anjo benfazejo, surgia alguém lá da cozinha – geralmente uma das filhas.

– e dizia:
– Gente, vem aqui pra dentro que o café está na mesa.

Tratava-se de uma metonímia gastronômica. O café era apenas uma parte: pães, bolo, broas, queijo fresco, manteiga, biscoitos, leite... Tudo sobre a mesa.
Juntava todo mundo e as piadas pipocavam. As gargalhadas também.
Pra quê televisão? Pra quê rua? Pra quê droga? A vida estava ali, no riso, no café, na conversa, no abraço, na esperança... Era a vida respingando eternidade nos momentos que acabam.... Era a vida transbordando simplicidade, alegria e amizade...
Quando saíamos, os donos da casa ficavam à porta até que virássemos a esquina. Ainda nos acenávamos. E voltávamos para casa, caminhada muitas vezes longa, sem carro, mas com o coração aquecido pela ternura e pela acolhida. Era assim também lá em casa. Recebíamos as visitas com o coração em festa... A mesma alegria se repetia. Quando iam embora, também ficávamos, a família toda, à porta. Olhávamos, olhávamos... Até que sumissem no horizonte da noite.

O tempo passou e me formei em solidão. Tive bons professores: televisão, vídeo, DVD, e-mail... Cada um na sua e ninguém na de ninguém. Não se recebe mais em casa. Agora a gente combina encontros com os amigos fora de casa:
– Vamos marcar uma saída!... – ninguém quer entrar mais.
Assim, as casas vão se transformando em túmulos sem epitáfios, que escondem mortos anônimos e possibilidades enterradas. Cemitério urbano, onde perambulam zumbis e fantasmas mais assustados que assustadores.
Casas trancadas.. Pra quê abrir? O ladrão pode entrar e roubar a lembrança do café, dos pães, do bolo, das broas, do queijo fresco, da manteiga, dos biscoitos, do leite...

Que saudade do compadre e da comadre!

José Antônio Oliveira de Resende

Professor de Prática de Ensino de Língua Portuguesa, do Departamento de Letras, Artes e Cultura, da Universidade Federal de São João del-Rei.


Fonte da imagem: http://borgeseleuterio.blogspot.com/2010/06/solidao-amiga.html

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

"Eu ajudei a destruir o Rio de Janeiro" - Texto para Reflexão


Sylvio Guedes, editor-chefe do Jornal de Brasília, critica o "cinismo” dos jornalistas, artistas e intelectuais ao defenderem o fim do poder paralelo dos chefes do tráfico de drogas. Guedes desafia a todos que "tanto se drogaram nas últimas décadas que venham a público assumir: eu ajudei a destruir o Rio de Janeiro".

Leia o artigo na íntegra:

É irônico que a classe artística e a categoria dos jornalistas estejam agora na, por assim dizer, vanguarda da atual campanha contra a violência enfrentada pelo Rio de Janeiro. Essa postura é produto do absoluto cinismo de muitas das pessoas e instituições que vemos participando de atos, fazendo declarações e defendendo o fim do poder paralelo dos chefões do tráfico de drogas.

Quando a cocaína começou a se infiltrar de fato no Rio de Janeiro, lá pelo fim da década de 70, entrou pela porta da frente. Pela classe média, pelas festinhas de embalo da Zona Sul, pelas danceterias, pelos barzinhos de Ipanema e Leblon. Invadiu e se instalou nas redações de jornais e nas emissoras de TV, sob o silêncio comprometedor de suas chefias e diretorias.

Quanto mais glamuroso o ambiente, quanto mais supostamente intelectualizado o grupo, mais você podia encontrar gente cheirando carreiras e carreiras do pó branco.
Em uma espúria relação de cumplicidade, imprensa e classe artística (que tanto se orgulham de serem, ambas, formadoras de opinião) de fato contribuíram enormemente para que o consumo das drogas, em especial da cocaína, se disseminasse no seio da sociedade carioca - e brasileira, por extensão.
Achavam o máximo; era, como se costumava dizer, um barato. Festa sem cocaína era festa careta.
As pessoas curtiam a comodidade proporcionada pelos fornecedores: entregavam a droga em casa, sem a necessidade de inconvenientes viagens ao decaído mundo dos morros, vizinhos aos edifícios ricos do asfalto.

Nem é preciso detalhar como essa simples relação econômica de mercado terminou. Onde há demanda, deve haver a necessária oferta. E assim, com tanta gente endinheirada disposta a cheirar ou injetar sua dose diária de cocaína, os pés-de-chinelo das favelas viraram barões das drogas.

Há farta literatura mostrando como as conexões dos meliantes rastacuera, que só fumavam um baseado aqui e acolá, se tornaram senhores de um império, tomaram de assalto a mais linda cidade do país e agora cortam cabeças de quem ousa lhes cruzar o caminho e as exibem em bandejas, certos da impunidade.

Qualquer mentecapto sabe que não pode persistir um sistema jurídico em que é proibida e reprimida a produção e venda da droga, porém seu consumo é, digamos assim, tolerado.
São doentes os que consomem. Não sabem o que fazem. Não têm controle sobre seus atos. Destroem famílias, arrasam lares, destroçam futuros.

Sabemos que muitos já partiram desta para uma melhor, outros caminham para o fundo do poço mas esperamos que a mídia, os artistas e os intelectuais que tanto se drogaram nas três últimas décadas venham a público assumir:

"Eu ajudei a destruir o Rio de Janeiro."
Façam um adesivo e preguem no vidro de seus Audis, BMWs e Mercedes.

Fonte: Jornal de Brasília



E você concorda?

Começar de Novo



Começar de novo
(Ivan Lins e Victor Martins)

Começar de novo e contar comigo
Vai valer a pena ter amanhecido
Ter me rebelado, ter me debatido
Ter me machucado, ter sobrevivido
Ter virado a mesa, ter me conhecido
Ter virado o barco, ter me socorrido
Começar de novo e contar comigo
Vai valer a pena ter amanhecido

Sem as suas garras sempre tão seguras
Sem o teu fantasma, sem tua moldura
Sem suas escoras, sem o teu domínio
Sem tuas esporas, sem o teu fascínio
Começar de novo e contar comigo
Vai valer a pena já ter te esquecido
Começar de novo...



Participação de Simone.