Ser cruel...
A crueldade humana: uma primeira reflexão
Quando o escritor português José Saramago afirmou que os animais podem
ser selvagens, mas que apenas o homem é cruel, ele estava chamando a atenção
para um fato bastante inquietante, que subverte profundamente a imagem que
temos de nós mesmos. Ele estava dizendo, da maneira mais clara e assustadora
possível, que a crueldade é um fenômeno humano (e não animal). Uma afirmação
que, sem dúvida alguma, põe em jogo duas certezas bastante arraigadas em nós: a
de que o excesso de agressividade está relacionado à nossa herança selvagem e a
de que a razão fez do homem um ser realmente superior.
De fato, do ponto de vista moral e ético, a ruptura que o homem fez com
a vida natural não parece ter feito dele um ser melhor. É claro que se pode
alegar que somos superiores exatamente porque somos os únicos animais capazes
de desenvolver uma moral e uma ética, mas isto também não depõe muito em nosso
favor, já que também somos os únicos a realmente precisar delas, já que os
animais vivem integrados à natureza e nunca transgridem as suas leis. Sim, é
exatamente isto: é porque os homens transgridem suas próprias leis e,
sobretudo, é porque a nossa espécie é a única capaz de cometer atos bárbaros
por prazer ou descaso com a dor alheia (como diz Saramago, um animal jamais
tortura ou humilha o outro), que precisamos de leis que regulem a vida em
sociedade. Sem dúvida, a justiça é uma necessidade, mas exatamente porque nós,
os ditos “animais racionais”, ainda não aprendemos a respeitar a existência
alheia.
Sem dúvida, vendo à distância o mundo humano, com tanta desigualdade,
miséria, guerras, exploração e escravidão (humana e animal), é difícil
acreditar que somos realmente seres racionais, compassivos e sensíveis. E, no
entanto, apesar de tudo, é isto o que somos, pelo menos, potencialmente (eis
porque, quando a razão e a sensibilidade se aliam no homem, ele é capaz de
produzir uma existência verdadeiramente bela e ética). No entanto, o problema é
que, na prática, o homem se comporta sempre aquém das suas potencialidades e
aí, sim, cabe-nos perguntar por que o homem pode tanto e atinge tão pouco?
Decerto, alguns responderiam: “ele não pode: isto é uma falácia!”
Outros, por sua vez, diriam: “ele pode, basta querer!” Pois tanto os primeiros
quantos os segundos se equivocam: os primeiros estão mergulhados no pessimismo
que, certamente, tem sua origem (até certo ponto justa) numa visão clara do que
tem sido a vida humana; já os segundos são otimistas demais, acreditando que a
vontade é livre o suficiente para escolher. Os dois erram, porque, de fato, o
homem pode mais, mas seus valores o dirigem de tal maneira que é preciso,
primeiramente, que ele se liberte de seus antigos grilhões, ou seja, que se
liberte dos conceitos e das ideias que o tornam prisioneiro das circunstâncias,
que o tornam passivo e resignado diante de um mundo que ele não acredita poder
mudar.
Aqui entramos no cerne da questão: as sociedades se estruturaram, desde
os seus primórdios, de modo a beneficiar alguns em prol de outros (eis porque,
desde o início, os homens escravizam outros homens e também os animais). Esta é
a origem da exploração e das desigualdades. É assim que nos acostumamos, desde
cedo, a usufruir de outras vidas, aprendendo a fechar os olhos para a crueldade
e para a tirania, como se elas fossem naturais em nós, quando, de fato, elas
expressam o adoecimento da nossa espécie. Sim, a inversão do pensamento começa
aqui: não somos primeiramente seres selvagens e maldosos que se aculturam e se
tornam sublimes. Como um animal dentre outros, nós possuímos censores naturais
que nos impedem de ultrapassar certos limites; mas, em sociedade, somos criados
para obedecer regras inventadas pelos próprios homens e é aqui que tudo se
complica e se confunde. Afinal, é a própria sociedade que nos ensina o descaso
com a dor alheia, dos homens e dos animais. E, assim, como todos os demais,
acabamos ou explorando os outros diretamente, e sem culpa, ou usufruindo,
também sem culpa, dos benefícios da exploração. Afinal, temos o consentimento
da própria sociedade para sermos pequenos tiranos.
Existe, de fato, uma razão perversa para que os homens sejam mantidos
de olhos fechados. É que é preciso que eles continuem na escuridão e na
servidão dos valores para que a desigualdade, a exploração, a escravidão,
continuem existindo. Este é o maior de todos os atavismos humanos: aprendemos a
nos beneficiar dos outros, aprendemos a ser, na verdade, imorais, antiéticos. É
a nossa moral que tem sido, há milênios, uma falácia. Triste condição a nossa:
somos vítimas de nossa própria inteligência superior. Na ânsia de fazermos
parte do mundo, de nos integrarmos ao nosso meio social, apertamos ainda mais
os nossos grilhões, tornamo-nos escravos e, ao mesmo tempo, agentes de nossa
própria servidão. Servidão voluntária e até mesmo desejada, porque é mais fácil
viver como todos os demais do que abrir os olhos e tomar nas mãos a própria
vida.
De fato, é difícil mudar… mas andar também é e, no entanto, basta
darmos os primeiros passos que os outros se seguem facilmente. Quase tudo no
homem é hábito, é aprendizado. Por isto, a educação é tão fundamental e, mais
ainda, uma educação que se volte para produzir um homem verdadeiramente
superior, moral e eticamente falando. No fundo, por mais polêmica que pareça
esta afirmação, o que resiste em nós de mais sublime é exatamente o nosso
instinto mais elementar, que nos sopra aos “ouvidos” que agimos mal o tempo
inteiro. É nossa saudável razão natural (como diria Nietzsche) que nos alerta,
e não o que homem tem chamado de moral. Na verdade, não é nossa animalidade que
precisa ser extirpada; é nossa falsa humanidade.
Sem dúvida, somos animais incríveis, somos os criadores dos mais belos
conceitos e valores, mas também somos facilmente corrompidos pela ambição, pela
ganância, pela vaidade e, para atingir nossas metas ilusórias de felicidade,
usufruímos de outras vidas sem qualquer pudor. Com relação aos animais, esta
realidade é ainda mais terrível, porque quase ninguém considera a sua dor, o
seu sofrimento. É assim que milhões de vidas são brutalizadas, humilhadas, mortas
todos os dias, sem qualquer piedade. É por isto que, mesmo quando somos
vítimas, somos também responsáveis pela crueldade que nos atinge. Afinal, a
crueldade, mais do que a racionalidade, tem sido o principal atributo do homem.
Eis uma verdade dolorosa, mas que é preciso encarar se desejamos mudar o que
precisa ser mudado. Na verdade, o homem não tem sido, nem de longe, o animal
superior que julga ser.
Falando agora mais diretamente sobre a origem da crueldade humana, cito
o grande historiador das religiões Mircea Eliade, que nos revelou algo de muito
valioso em sua monumental obra “História das crenças e das ideias religiosas”
(algo que endossa o que dizemos aqui a respeito do aspecto “contra-natura” da
crueldade): o homem, inicialmente, não matava (nem mesmo para comer). Isto quer
dizer que não somos originalmente nem carnívoros nem onívoros, e esta é uma
informação que a ciência não deveria nos sonegar. Aliás, segundo as pesquisas
de Eliade, toda a história posterior do homem é marcada exatamente por esta
decisão que ele tomou no início dos tempos: a decisão de “matar para
sobreviver”. Não vamos entrar na questão propriamente dita, falar da religião,
que, segundo Eliade, está na base desta cruel decisão. Precisamos apenas
entender que o homem tornou-se, de fato, o senhor da natureza, mas não por ser
um animal divino ou por ser dotado de um espírito enquanto os outros seres
vivos são corpos vazios; ele se tornou senhor da natureza porque tiranizou a
vida, todas as vidas, inclusive a de sua própria espécie.
Sem dúvida, esta primeira violação da nossa natureza não poderia deixar
de causar marcas indeléveis no homem e, assim, não parece nada equivocado
concluir que este primeiro ato de barbárie deu origem a todos os demais.
Afinal, o que poderia se esperar de um ser que age contra sua própria natureza?
Ele só poderia adoecer, enlouquecer. Não é isto, afinal, que Nietzsche diz dos
homens: que somos animais adoecidos, que perdemos nossa “saudável razão
natural”? Nós nos perdemos de nós mesmos e nunca mais conseguimos nos
encontrar. É isto que explica esta espera ensandecida por alguém que nos salve,
que nos tire do fundo do abismo, quando, na verdade, bastaria apenas que
olhássemos sem medo para dentro de nós mesmos. Sim, somos o que aprendemos, mas
por baixo de todas as ideias, crenças, conceitos, existe um animal desesperado
que clama por liberdade e por uma vida mais digna. A felicidade não está nos
bens que se obtém no mundo, menos ainda nos que se obtém à custa da exploração
e do sofrimento alheio; a felicidade está em ser pleno, forte e capaz de viver
sem macular a si e aos outros. Isto, sim, chama-se respeito ao outro; não o que
tem sido ensinado.
O homem inverteu a lógica da vida e assim produziu um mundo assentado
na dor e no sofrimento. Sim, a vida tem dores e sofrimentos, já dizia
Schopenhauer, mas o homem conseguiu multiplicá-las ao infinito. Não é a
natureza que é cruel; somos nós: é isto que o homem se nega a ver. E ele vive
tão imerso na dor e no sofrimento que chega mesmo a sentir-se atraído por eles;
a se compor com eles, a lhes fazer elogios e a morbidamente saudá-los como
inerentes à sua natureza. No entanto, a verdade é que, desde a infância, somos
insensibilizados, adestrados para não reagir, para não sentir em demasia (nem
amor, nem dor, nem compaixão, absolutamente nada… Descartes, de fato, confundiu
as coisas: os homens é que se tornaram “máquinas sem alma”). Dito de outro
modo: os sentimentos são em nós, desde cedo, aprisionados, dilacerados,
considerados perigosos. Não se costuma dizer que a própria paixão é um perigo?
Sim, o perigo da paixão é que ela pode nos desviar dos deveres que nos foram
impostos pelo mundo; deveres aos quais aprendemos a obedecer como autômatos,
mesmo quando eles nos rebaixam como seres humanos.
Dito de modo mais claro: somos escravos de um mundo que nós mesmos
construímos (e cada um põe um tijolo nesta construção enquanto não desperta
deste longo torpor, deste anestesiamento moral que subverte nossa natureza e
nos rouba a liberdade de sermos aquilo que somos: seres verdadeiramente
humanos). É assim que todo homem permanece preso num círculo vicioso,
aparentemente insolúvel, até que comece a dizer “não” para a crueldade, seja
ela dirigida aos outros homens ou aos outros animais (certamente, as maiores
vítimas deste mundo). É um caminho árduo, sem dúvida, mas como poderia ser
barato o preço da liberdade e da plenitude humana depois de tanta inversão de
sentimentos e ideias?
Este é o verdadeiro começo: o primeiro “não” é sempre mais difícil, mas, depois
do primeiro, outros se seguirão, e a cada “não” a nossa força aumenta, porque
ela é proporcional ao nível da nossa libertação. Este é o maior legado que
podemos deixar para as próximas gerações: libertar todas as vidas. Aliás, esta
já é a condição para que as novas gerações sejam possíveis, porque a natureza
não tolera mais a tirania humana. Ou fazemos algo agora ou é a natureza que
seguirá sem nós: isto é um fato. Porque gostando ou não da ideia, não é a
natureza que precisa do homem, somos nós que dependemos da natureza. Nós somos
partes dela, e não o contrário. É por isto que libertar os animais é também
libertar o animal humano da sua doença; é dar a ele uma nova possibilidade de
existência que seja mais bela, mais ética, mais verdadeiramente racional.
Não é sem razão que Nietzsche dizia que era preciso inventar novos
valores para um novo homem. Ele não chegou a pensar tão profundamente na
questão dos animais; mas ele sabia que um novo homem seria aquele que
recuperaria o sentido da terra e da vida. Se ele afirmou que fizemos da mentira
uma verdade, isto não quer dizer que não existam verdades simplesmente, que
tudo “tanto faz”. Esta interpretação já tem sua origem na nossa inversão das
coisas e é bem-vinda num mundo que busca argumentos para manter-se como é. Mas
nem o capitalismo, nem o comunismo, nem qualquer outro sistema será justo
enquanto não formos seres verdadeiramente éticos. Nós criamos as verdades que
nos interessam. São mentiras: Nietzsche tem razão. Está na hora de
“inventarmos” a verdade, ou melhor, está na hora de deixarmos que ela se mostre
sem mais véus e dissimulações. “Da verdade mesmo, ninguém nunca quis saber”,
também estas são palavras de Nietzsche. Mas, disto, falamos depois…
Regina Schöpke
Fontes
Google Imagens